quarta-feira, 14 de setembro de 2011

HGCB - Ciganos no Brasil: Século XIX (vídeos: Cigana)

Elaborar estimativas da população cigana no Brasil na época de Dom João VI (1808-1821) é bastante arriscado. Infelizmente, para as autoridades da época e os historiadores atuais, a mobilidade geográfica e a marginalidade social da maioria dos ciganos tornaram os ciganos praticamente ausentes nos recenseamentos e registros paroquiais.

Conforme Donovan: "Nenhuma evidência foi trazida à luz, ainda, sobre, por exemplo, a taxa de reprodução natural: eram as famílias ciganas no Brasil maiores, menores, ou do mesmo tamanho que outras famílias, brancas ou de forros?". Tanto os depoimentos de cronistas, viajantes e memorialistas, quanto a documentação jurídica e policial, na maioria das vezes não quantificam o número de indivíduos dos bandos ciganos encontrados. Apesar da imprecisão das informações sobre diversos bandos ciganos, fazendo-se um esforço considerável, chega-se a algumas estimativas. Ao que tudo indica, numericamente, os principais grupos de ciganos sedentários estavam na Bahia e no Rio de Janeiro, ou seja, nos dois mais importantes portos marítimos da época.
Sobre os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no início do século XIX, sabemos que ... quatrocentos ciganos formavam uma comunidade na periferia sul da cidade e outro grupo vivia dentro da cidade em torno da Rua dos Ciganos, Campo de Sant-'Anna e o mercado de escravos da cidade. Para outras províncias, como a Bahia, são mencionados bandos menores compostos de pelo menos duas dezenas de ciganos. Porém a documentação de modo algum é exaustiva. Donovan acredita que "excluindo escravos e outros itinerantes morando com eles, numa estimativa conservadora de no mínimo quatro até sete mil ciganos viviam no Brasil nas décadas precedendo a independência", conquistada em 1822.

Alguns testemunhos dão uma idéia do número de indivíduos em bandos ciganos. Em viagem ao norte de Minas (em Contendas, atual Brasília de Minas), James Wells encontrou um grupo de ciganos que "compunha-se de cerca de cinqüenta homens e mulheres e diversas crianças." Um fato interessante é que tal comunidade já então era sedentária. No terreno, existiam "umas poucas casas e certa quantidade de barracas brancas." As “barracas brancas” certamente eram barracas ou tendas de lona. Em todo século XIX predominam noticias sobre ciganos nômades transitando pelo território mineiro, o que dificulta ainda mais as estimativas sobre a população cigana. Mas Raimundo José da Cunha Matos, já em 1837 descrevia as "pequenas casas" dos ciganos em Minas, ou seja, casas de ciganos sedentários. Consta que estes ciganos exerciam as mais diversas profissões. Moraes Filho cita um velho cigano, que seria descendente de ciganos banidos de Portugal em 1718, segundo o qual “logo que desembarcaram [no Rio de Janeiro]... alojaram-se em barracas no Campo dos Ciganos, enorme e inculta praça que se estendia da Rua do Cano até a Barreira do Senado.

Empregavam-se eles ... no trabalho dos metais: eram caldeireiros, ferreiros, latoeiros e ourives; as mulheres rezavam de quebranto e liam a sina”. Ou seja, mais uma vez temos notícia de ciganos que eram trabalhadores honestos. Era principalmente nas suas transações comerciais que os ciganos eram acusados de serem ladrões e trapaceiros. O já citado Saint Hilaire, em 1819, teve contato com ciganos, aparentemente sedentários ou semi-sedentários, de São Paulo e informa:
Havia em Urussanga, enquanto lá estive, um bando numeroso de ciganos. Estes homens moravam na aldeia vizinha a Mogy Guassú e circulavam pelas vizinhanças para fazerem, de acordo com o feitio de sua gente, barganhas de mulas e de cavalos. (...) Pareciam extremamente unidos e tiveram para comigo grandes gentilezas. Não lhes ouvi falar língua diversa do portugues. Estavam vestidos como os brasileiros, mas traziam cabelos e barbas compridas (contrariando o costume geral do país). Estavam todos assaz bem vestidos, possuíam escravos, cavalos e cargueiros, bastante numerosos. (...) Os ciganos de Urussanga passaram o dia todo tentando fazer barganha com os tropeiros das duas tropas que comigo compartilhavam o rancho. Em tom de caçoada falei a um deles da pouca probidade de que sua nação é acusada. - Logro tanto quanto posso, respondeu-me seriamente, mas todos aqueles que negociam comigo fazem a mesma coisa. A única diferença que entre nós existe é que esta gente solta grandes berros quando se vê lograda e eu quando me ludribriam nada digo a quem quer que seja.
Enquanto Saint Hilaire tenta entender os ciganos e o seu modo de vida, o mesmo não acontece com o preconceituoso viajante francês Freycinet (1817-20):
No número dos elementos de que se compõe a população do Rio de Janeiro, nenhuma sem dúvida alguma é mais digno de espicaçar curiosidade do que a presença dos indivíduos desta nação cosmopolita ..... aqui conhecida, como em Portugal, pelo nome de ciganos. (...) Dignos descendentes dos párias da Índia .... os ciganos do Rio de Janeiro ostentam como eles o hábito de todos os vícios e propendem para todos os crimes. Possuidores de grandes riquezas, em sua maioria ostentam considerável luxo em roupas e cavalos, sobretudo por ocasião de suas bodas que são muito suntuosas, comprazendo comumente na devassidão crapulosa. Há ociosidade absoluta. Falsos e mentirosos, furtam quanto podem ao comerciarem e também são sutis contrabandistas. Aqui, como por toda parte onde se encontra esta abominável raça, suas alianças só se fazem entre eles. Têm sotaque e até mesmo uma gíria própria. Por uma esquisitice absolutamente inconcebível, o governo tolera esta peste pública: duas ruas privativas até lhe são destinadas na vizinhança do Campo de Sant’Anna - a Rua e a Travessa dos Ciganos.

Com a mudança de família real portuguesa para o Brasil, em 1808, vieram também alguns milhares de portugueses e, segundo Moraes Filho, “Do interminável séquito da família real poucos prestavam para alguma coisa. Eram fidalgos e vadios. Aos fidalgos mandou-se dar pensões do tesouro... Os vadios foram empregados nas repartições que se criaram para esse fim”. Tudo indica que entre estes funcionários públicos “vadios” encontravam-se também ciganos, e que muitos deles foram contemplados com o cargo então vitalício e hereditário de oficial de justiça. Além disto, há referências a ciganos artistas que alegraram várias festas reais. Porém, a atividade econômica principal dos ciganos parece mesmo ter sido o comércio ambulante, de animais, escravos ou objetos, viajando pelos sertões do Brasil. Para a região Nordeste temos informações, embora de segunda mão, através do inglês (mas nascido em Portugal) Henry Koster, que viveu em Pernambuco de 1809 a 1815:
São muito falados para que se possa esquecer os ciganos. Ouvi assiduamente citar esse povo mas nunca me foi possível avistar um só desses homens. Bandos de ciganos tinham outrora o hábito de aparecer, uma vez por ano, na aldeia do Pasmado, e noutras paragens dessa zona, mas o último governador da província era inimigo deles e tendo feito alguma tentativa para prender alguns, as visitas desapareceram. Descreveram-nos como homens de pele amorenada, feições que lembram os brancos, bem feitos e robustos. Vão errando, de lugar em lugar, em grupos de homens, e mulheres e crianças, permutando, comprando e vendendo cavalos e ninharias de ouro e prata. As mulheres viajam a cavalo, sentadas entre os cestos dos animais carregados e os meninos são postos dentro dos cestos, de mistura com a bagagem. Os homens são cavaleiros eméritos .... Dizem que não praticam religião alguma, não ouvindo missa nem confessando seus pecados. E é sabido que jamais casam fora da sua nação.

Koster morou durante muitos anos no litoral pernambucano e fez duas longas viagens pelo interior nordestino, na época uma verdadeira aventura, e é admirável que mesmo assim nunca tenha encontrado pessoalmente ciganos, o que faz supor, primeiro, que não viviam mais ciganos no litoral nordestino/pernambucano, e segundo, que os ciganos eram bastante raros no interior, ou então até talvez inexistentes, por causa das contínuas perseguições.

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