segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Ciganos - Denominações e diversidade (musical: Ciganos D'Ouro)

Desde o século XV a palavra “cigano” é utilizada como um insulto. O termo aparece registrado pela primeira vez em português em A farsa das ciganas de Gil Vicente, provavelmente em 1521. Nesta obra os ciganos são considerados como originários da Grécia. No século XIX, no Brasil, não se fala nem que são originários da Grécia nem da Índia. Apesar de ganhar cada vez mais força, na Europa, a explicação de que os ciganos teriam vindo do subcontinente indiano. No entanto, há menções sobre ciganos, no Brasil, em que eles se diziam descendentes de antigos egípcios:
"No Brasil os ciganos afirmam também que procedem do Egito; e contam a velha lenda de que, por terem recusado hospedagem à Virgem Maria quando ela fugia, peregrinam sobre a terra dispersos, sem pátria, por todos os tempos."

Algumas vezes são chamados de turcos. Notícias de O Pharol, de Juiz de Fora, referem-se a esses "turcos" pedindo esmolas e impingindo bugigangas às pessoas. Há ainda uma "reclamação vinda de Porto das Flores sobre a presença de 'turcos' naquela localidade."
Em geral, nas posturas municipais que tratam de ciganos, em primeiro lugar, eles são associados às "pessoas desconhecidas e suspeitas." Em seguida, são definidos como sendo "os que são por taes havidos", ou seja, reconhecidos socialmente como ciganos. Reconhecimento dado porque eles "costumão a fazer freqüentes trocas e compras de animaes, e vendas de escravos, e não são moradores no Termo, ou não há pessoa capaz, que os conheça, e abone." Assim, eram relacionados, a priori, ao comércio de mercadorias roubadas (escravos, animais e objetos variados), a não ser que houvesse alguém que afiançasse sua honestidade. A idéia que orientava este prejulgamento, era a de que apenas seria confiável o indivíduo com residência fixa. Pois o nômade não tinha morador que o conhecesse e o abonasse.

O historiador traz na mente um cigano típico (um protótipo), mas que necessita ser desmontado pelas evidências de grupos ciganos na diversidade de situações em que se encontram. Se for sensível, compreenderá que, antes de tudo, deve desconstruir o modelo sobre os genericamente chamados ciganos. Uma história de ciganos deve ser feita de muitas exceções, impossibilidades, contradições, incongruências, contra-sensos. Essa perspectiva tem um cigano que extrapola a coerência que a escrita tradicional do historiador exige; as condições espaciais e temporais individualizam muito os ciganos; a história dos ciganos é a história de um mosaico étnico. Este cigano - total abstração - é como a repetição infinita de um modelo ou motivo que se realiza através de variantes ilimitadas. Nas últimas décadas, pesquisadores, ciganos ou não, consagraram a distinção dos ciganos, no Ocidente, em três grandes grupos. O grupo Rom, demograficamente majoritário, é o que está distribuído por um número maior de países. É dividido em vários subgrupos (natsia, literalmente, nação ou povo), com denominações próprias, como os Kalderash, Matchuara, Lovara e Tchurara. Teve sua história profundamente vinculada à Europa Central e aos Balcãs, de onde migraram a partir do século XIX para o leste da Europa e para a América. Muitas organizações ciganas e vários ciganólogos têm tentado substituir, no léxico, Ciganos por Rom. A este processo tem-se denominado romanização, e tem a intenção de conferir legitimidade a estes grupos como sendo o dos "verdadeiros ciganos." Há ainda, pelo menos, duas derivações dessa política. A primeira, a do subgrupo Kalderash, autoproclamada a mais "autêntica" e "nobre" entre as comunidades ciganas. A segunda é a do grupo lingüístico vlax romani, considerado, por muitos pesquisadores, como portador da "verdadeira língua cigana".

Fontes:
Coelho, F. A., Os ciganos de Portugal; com um estudo sobre o calão, Lisboa, Dom Quixote, 1995. (Original: 1892). p. 199-200.
Bourdieu, P. , Questões de Sociologia, Rio de Janeiro, 1983. p. 30.
Acton, Th., Gypsy politics and social chance, London and Boston, Routledge & Keghan Paul, 1974. p. 54.
Bluteau, R., “Cigano”, In: Vocabulário portuguez, & latino, aulico, anatomico, architectonico...; tomo II, Coimbra, Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu; Lisboa Ocidental, Pascoal da Sylva, 1712. p. 311-312.
Donovan, B., “Changing perceptions of social deviance: gypsies in early modern Portugal and Brazil”, Journal of Social History, Vol. 26, 1992, p. 35.
Silva, A. de Moraes, “Cigano”, Dicionário da lingua portuguesa, Rio de Janeiro, Officinas de S.A. Litho-Typographia Fluminense, 1922, Tomo Primeiro. p. 396.
Schwarcz, L. Moritz, O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo, Cia. das Letras, 1993. p. 13.
Passando de cerca de 60 mil em 1808 para 122.695 habitantes em 1821, ano de regresso da família Real para Portugal; cf. Mattos, I. Rohloff, O tempo Saquarema; a formação do estado imperial., São Paulo, Hucitec, 1990. p. 50.
Fraga Filho, W., Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX, São Paulo, HUCITEC; Salvador, EDUFBA, 1996, p. 179.
Schwarz, 1993. p. 13.
Cf. Dornas Filho, J., “Os ciganos em Minas Gerais”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano III, vol. III, 1948, p. 166.
Fraser, A., The gypsies, Oxford, Blackwell Publishers, 1992, p. 48.
Vicente, G., Obras completas, Vol. 5, 3ª ed. Lisboa, Livraria Sá da Costa, s.d. [“A farsa das ciganas” (1521?), pp. 319-329].
Pohl, J. B. E., Viagem no interior do Brasil,, [Primeira Parte], Rio de Janeiro, MEC/INL, 1951 (Original: 1832), p. 274.
Goodwin Junior, J. W., “Império do Brasil: nesta nação nem todo mundo é cidadão!”, Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, ano V, nº 9, 1997. p. 32; baseando-se em: O Pharol, Juiz de Fora, 27 set. 1884 e 07 fev. 1885.
Goodwin Junior 1997, p. 32; baseando-se em O Pharol, Juiz de Fora, 07 abril 1988.

"A grande falha da literatura sobre ciganos, oficial e acadêmica, é a supergeneralização, observadores têm sido facilmente levados a acreditar que práticas de grupos particulares são universais, com a concomitante sugestão de que qualquer grupo que não seguisse as mesmas práticas não seriam 'verdadeiros' ciganos." (Acton, Th., Gypsy politics and social change, London and Boston, Routledge & Kegan Paul, 1974. p. 3).

Rom, substantivo singular masculino, significa homem e, em determinados contextos, marido; plural Roma; feminino Romni e Romnia. O adjetivo romani é empregado tanto para a língua quanto para a cultura. Apesar disto, como fazem muitos outros ciganólogos, a seguir sempre escreveremos "os Rom" e não "os Roma", da mesma forma "os Calon", "os Sinti", etc. Na falta de um acordo formal sobre a grafia das autodenominações ciganas, aplicou-se também a estas a "Convenção para grafia dos nomes tribais", que "se escreverão com letra maiúscula, facultando-se o uso de minúscula no seu emprego adjetival", e "os nomes tribais não terão flexão portuguesa de número ou gênero, quer no uso substantival, quer no adjetival" (“Convenção para a grafia dos nomes tribais”, Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 2, nº 2, 1954, p. 152).
Os Sinti, também chamados Manouch, falam a língua sintó e são numericamente expressivos na Alemanha, Itália e França. No Brasil, nunca foi feita uma pesquisa apurada sobre sua presença. Provavelmente, os primeiros Sinti chegaram ao país também durante o século XIX, vindos dos mesmos países europeus já mencionados.
Os Calon, cuja língua é o caló, são ciganos que se diferenciaram culturalmente após um prolongado contato com os povos ibéricos. Da Península Ibérica, onde ainda são numerosos, migraram para outros países europeus e da América. Foi de Portugal que vieram para o Brasil, onde são o grupo mais numeroso. Embora os Calon tenham sido pouco estudados, acredita-se que não haja entre eles algo que se assemelhe à complexa subdivisão dos Rom.

Historicizar os ciganos nos remete a compreendê-los na sua pluralidade e no seu excepcionalismo. Há uma generalidade reducionista ao se chamar de ciganos indivíduos e/ou comunidades com diferenças significativas entre si. Precisa-se, assim, tomar cuidado ao denominar "cigana" a identidade de grupos que chegaram ao Brasil deportados de Portugal, desde o século XVI e, ao mesmo tempo, a identidade de famílias oriundas dos Balcãs e da Europa Central, que chegaram ao país no final do século XIX. Trata-se de uma enganosa generalização, sem dúvida, pois que o espaço e o tempo modificam sensivelmente a constituição desses "sujeitos". Assim, um cigano Calon e um cigano Rom só possuem predicado idêntico no domínio da linguagem, quando emitimos proposições como: "Este Calon é cigano" ou "Aquele Rom é cigano". Mas a percepção atenta das singularidades nega, taxativamente, a suposta identidade dos nomes e dos predicados.
Em contraposição a isso tudo, os ciganos pensam em si próprios de forma fragmentária. Cada cigano tem uma forte identificação com seu grupo familiar ou com as famílias que têm o mesmo ofício. Mas não existe uma identidade única entre todos os ciganos. Entretanto, apesar de não corresponder aos atributos percebidos ao nível da singularidade dos indivíduos, o tempo cigano é capaz de nos levar a um reconhecimento ou a uma diferenciação mínima. Por exemplo, não se confundia um cigano com um índio ou um mascate libanês.

Quando alguém usa o predicado "cigano" para qualquer "sigano" ou "pessoa assiganada" (como aparece em documentos coloniais), está querendo propor que este predicado representa uma relação de semelhança entre identidades. Isso é aceitável. Mas não concordamos com a concepção ingênua de que esse predicado estivesse contendo uma correspondência perfeita com os seus referentes.
No domínio dos ciganos, não existem senão múltiplas identidades. Daí que o termo cigano não designa as comunidades por nomes que elas próprias dão para si. Ele designa, isto sim, uma abstrata imbricação de comunidades ciganas. A diferença é muito grande, pois na realidade não existem ciganos, mas sim diversas comunidades (historicamente diferenciadas) chamadas de ciganas, mantendo relações de semelhança e/ou dissemelhança umas com as outras. O termo cigano traz consigo uma série de inquietudes semânticas, ideológicas, antropológicas etc. Uma vez diagnosticada a complexidade e as ambigüidades inerentes à referida expressão, ao dissertarmos, torna-se impossível termos pretensões de elaborar sínteses conclusivas. Pois o complexo de certezas sobre o qual se apoia essa noção é bastante instável. A dispersão e o nomadismo, que tiveram início há mais de dez séculos, propiciou tantos contatos interétnicos e adaptações às condições espaço-temporais, que aplicar qualquer termo para o conjunto das comunidades ditas ciganas é um tanto arriscado.

O que nos parece claro é que os ciganos não são um grupo religioso ou uma nacionalidade. Além do mais, preferiu-se não chamar os ciganos de povo, pois também esta expressão tem significados pouco precisos e muito ambíguos. Na falta de um vocábulo que designe com propriedade o conjunto completo de todas as comunidades ciganas, adotar-se-á a expressão "ciganos", cujo sentido é aceito na sua generalidade, para referir-se a todos os indivíduos assim chamados. Embora se reconheça que tal uso nunca tenha tido plena legitimidade no seio das várias comunidades analisadas. A categoria "cigano" opera inúmeras descontinuidades, enquanto a narrativa do historiador necessita de conceitos que expressem um mínimo de continuidade. Ao contrário, estar-se-ia a cada momento escrevendo a história de um novo objeto de estudo. Os segmentos do mosaico existem, sobretudo, no domínio das descrições ou das teorias ciganológicas, influenciada pela insistência de classificação neopositivista. Ora, o que temos são grupos e suas variantes, decorrentes de combinações diversas, condicionadas por tempos e espaços particulares. Assim, os ciganos são múltiplos e unos. Nenhum cigano conhece todos os detalhes da identidade em que está inserido. Tal como não conhece todo o espaço cultural que o comporta, não sabendo, pois, ler todo o seu "mapa cultural". Toda cultura, afinal, oferece uma margem de manobra para os seus membros. Há aspectos da identidade cigana compartilhados por todos os ciganos, outros que são particulares de cada subgrupo e ainda outros selecionados pelo indivíduo num leque de opções. Cada cigano é portador de um conjunto singular de elementos dessa identidade, embora, não haja uma noção de individualidade tal como no mundo ocidental.

Toda história dos ciganos é, na verdade, uma viagem nas línguas, nas estéticas, nas políticas antivagabundos e antiartistas, nas religiões, nas concepções de mundo, com os quais vários grupos ciganos, sucessiva e contraditoriamente, tiveram contato. Nisso a universalidade dos ciganos se manifesta. Nesta história dos ciganos a diferença não pode se dissipar. Para ser honesta, ela deve mostrar muitas precauções para não condensar num padrão as particularidades de grupos variados (em momentos e espaços distintos), porque assim o discurso perderia informação, e a história, o sentido. Não se pode também confundir os ciganos com os discursos que os descrevem, ainda que se reconheça a existência de uma conexão entre eles. Dito isto, ressalta-se que as diferenças e a diversidade entre os ciganos não impedia que houvesse solidariedade. Os ciganos faziam da própria fluidez, da flexibilidade, de sua identidade um fator de fortalecimento desta solidariedade. Pois rearranjavam sua identidade de acordo com suas necessidades, por meio de alianças matrimoniais ou pelas festas que envolviam comunidades distintas. Além disto, colocadas em oposição aos não-ciganos, as várias comunidades se sentiam irmanadas.


As narrativas históricas sobre os ciganos, muitas vezes, perdem-se pela generalização exagerada (fala-se dos "ciganos" como tendo apenas uma única cultura); apenas umas poucas linhas sustentam o caráter diferencial de cada comunidade cigana estudada. E quando os autores se cansam das individualidades, esboçam a unidade (frágil e talvez inexistente) de múltiplos ciganos. Tanto o historiador quanto o ciganólogo escrevem como se todos os ciganos fossem apenas um só (o "cigano típico" ou o "cigano genérico"). Portanto, resta desconstruir essa unidade discursiva sobre os ciganos, pelo estudo das particularidades do caso em questão, tentando perceber as visões positivas e negativas que orientaram as ações da sociedade mineira frente aos ciganos. E também, como os ciganos flexibilizaram sua identidade diante das transformações conjunturais pelas quais passaram.

Nenhum comentário:

JcShow

O que é ser Voluntário!

Acordemos

É sempre fácil examinar as consciências alheias, identificar os erros do próximo, opinar em questões que não nos dizem respeito, indicar as fraquezas dos semelhantes, educar os filhos dos vizinhos, reprovar as deficiências dos companheiros, corrigir os defeitos dos outros, aconselhar o caminho reto a quem passa, receitar paciência a quem sofre e retificar as más qualidades de quem segue conosco... Mas enquanto nos distraimos, em tais incursões a distância de nós mesmos, não passamos de aprendizes que fogem, levianos, à verdade e à lição. Enquanto nos ausentamos do estudo de nossas próprias necessidades, olvidando a aplicação dos princípios superiores que abraçamos na fé viva, somos simplesmente cegos do mundo interior relegados à treva... Despertemos, a nós mesmos, acordemos nossas energias mais profundas para que o ensinamento do Cristo não seja para nós uma bênção que passa, sem proveito à nossa vida, porque o infortúnio maior de todos para a nossa alma eterna é aquele que nos infelicita quando a graça do Alto passa por nós em vão!... Xavier, Francisco Cândido. Da obra: Caridade. Ditado pelo Espírito André Luiz. Araras, SP: IDE. 1978.