segunda-feira, 15 de agosto de 2011

HGCB cap. 1 - Ciganos no Brasil: Séculos XVII e XVIII (video: Ciganos do Porto)

Com as fontes históricas conhecidas até agora, é praticamente impossível procurar exatidão em quaisquer dados histórico-demográficos sobre os ciganos no Brasil. As informações sobre os ciganos nos Séculos XVI e XVII são muito limitadas, embora sejam conhecidos documentos relativos às políticas anti-ciganas portuguesas.

Essa documentação referente ao Brasil torna-se menos escassa somente a partir do Século XVIII. Isto porque a partir do reinado de Dom João V, que durou de 1706 a 1750, a perseguição aos ciganos portugueses se acentuou e dezenas deles foram degredadas para as colônias ultramarinas, inclusive para o Brasil. No entanto, é bastante difícil, praticamente impossível, determinar quantos ciganos vieram para o Brasil até 1822. Segundo Donovan: "Enquanto a Gazeta de Lisboa menciona grandes grupos de deportados, nenhuma lista oficial de criminosos exilados tem sido trazida à luz. Assim o número de indivíduos e famílias embarcadas nos cargueiros anualmente, o volume daqueles transportados, permanece desconhecido.” Inclusive o número de ciganos deportados, que certamente constavam nestas listas de criminosos exilados, e eventualmente os motivos dessas deportações. Mas não há dúvida alguma que os primeiros ciganos que desembarcaram no Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes não vieram voluntariamente, mas expulsos daquele país. Foi o que parece ter acontecido, por exemplo, já em 1574, com um certo João de Torres e sua mulher Angelina que foram presos apenas pelo fato de serem ciganos. Inicialmente João foi condenado às galés e Angelina deveria deixar o país dentro de dez dias, levando seus filhos. Alegando, no entanto, que “era fraco e quebrado, e não era para servir em coisa de mar e muito pobre, que não tinha nada de seu”, João pediu para poder sair do Reino, ou então que pudesse ir para o Brasil para sempre.

O “pobre” cigano João de Torres deve ter pago um bom suborno porque logo, em poucos dias, seu pedido foi deferido e a pena foi mudada para “cinco anos para o Brasil, onde levará sua mulher e filhos”. O número de filhos não é mencionado, mas devem ter sido alguns poucos, talvez dois ou três, porque certamente não iriam deportar gratuitamente para o Brasil um (auto-declarado) miserável e inútil cigano João, sua mulher e uns dez ou quinze filhos. Por causa deste documento João de Torres sempre é citado como o primeiro cigano a entrar no Brasil. Não se sabe, porém, se ele realmente embarcou (ele pode ter pago outros subornos para se livrar disto), se “fraco e quebrado” aguentou a longa viagem marítima, na qual certamente não teve tratamento de primeira classe, ou se chegou ao seu destino, nem aonde desembarcou, nem quanto tempo ficou no Brasil, nem se depois dos cinco anos voltou a Portugal, algo pouco provável. Ou seja, nada, mas absolutamente nada se sabe sobre o destino dele e de sua família. É possível que nunca tenha chegado ao Brasil. De qualquer forma, se ele realmente embarcou, veio acompanhado apenas pela mulher e alguns poucos filhos e não “liderando um bando de ciganos” ou “chefiando numerosas famílias que o acompanhavam”, como erroneamente informam alguns autores, que preferiram usar a fantasia em vez de ler o documento original.

A deportação de ciganos portugueses para o Brasil, ao que tudo indica, só começou mesmo a partir de 1686. Dois documentos portugueses daquele ano informam que os ciganos deviam ser degredados também para o Maranhão. Antes eram degredados somente para as colônias africanas. A escolha da Coroa pela capitania do Maranhão visava pelo menos a dois objetivos. Primeiro, colocar os ciganos "bastante afastados das áreas brasileiras de mineração e de agricultura assim como longes dos principais portos da colônia, do Rio de Janeiro a Salvador." Segundo, esperava-se que os ciganos ajudassem a ocupar extensas áreas dos sertões nordestinos, então ainda ocupadas por índios. Ainda que perigosos, preferia-se os ciganos aos índios. Não foram ainda descobertos documentos com dados sobre o número de ciganos deportados para o Brasil nesta época, para quais capitanias e por quais motivos. Mas sabemos que também outras capitanias receberam ciganos, principalmente a partir de 1718, outro marco na política portuguesa de deportação de ciganos. Segundo Donovan:
"Como uma forma de expor publicamente sua determinação João V ordenou a deportação imediata de uma pequena comunidade cigana consistindo de cinquenta homens, quarenta e uma mulheres e quarenta e três crianças, então detidos na prisão municipal de Limoeiro. Seu banimento foi um procedimento cuidadosamente planejado, servindo como um ato de Estado. A justiça do início do período moderno era praticada de uma forma deliberadamente cerimonial. Oficiais publicizavam o evento antes através de anunciamentos boca a boca ou públicos. Nesse caso o embarque do navio brasileiro, que sempre atraía grandes multidões, forneceu o palco. A visão dos ciganos partindo acorrentados demonstrava para os espectadores o esforço da coroa pelo controle social. Isso é a publicação dos banimentos subsequentes assinalavam, sem dúvida, que a assimilação não era mais uma opção dos ciganos para escapar de seu status criminoso."

Em 15 de abril daquele ano, foi expedida comunicação de Lisboa para o governador de Pernambuco, apoiando-se no decreto já mencionado de Sua Majestade. Informa-se o embarque de ciganos para aquela capitania, mas parte dos quais deveria ser remetida depois para o Ceará/Brasil, e outra parte para Angola/África. Também devia-se tomar cuidado para que nenhum cigano ficasse em Pernambuco, e aos governadores do Ceará e de Angola recomendou-se que não deixassem os ciganos retornar a Portugal, nem permitissem o uso de sua língua, chamada também de geringonça. Apesar disto, muitos ciganos permaneceram em Pernambuco, entre eles alguns que solicitaram licença de permanência, ou então permissão de mudar-se para outras províncias. Pereira da Costa informa que:
“(.....) ficaram na capitania [de Pernambuco] vários ciganos, aos quais concedeu o vice-rei, por ordem de 14dez1720, que eles fossem estabelecer a sua moradia em Sergipe del-Rei. Permanecendo em Pernambuco avultado número de ciganos, apesar das ordens em contrário, representa contra eles a câmara de Olinda em 16dez1723, dizendo na carta que dirigiu ao soberano, que viviam eles espalhados pela capitania, cometendo toda a sorte de crimes, principalmente de furtos e assassinatos, e em tal escala, que não se podia mais tolerá-los, concluindo que S. Majestade houvesse de os mandar para o Ceará, onde poderiam prestar algum serviço na conquista do gentio bravio, e ficar assim o povo com algum sossêgo”.

Também em 1718, foram enviadas de Portugal para a Bahia "diversas famílias de ciganos." Por isto, Dom João V ordenou ao vice-rei, de forma semelhante ao que já havia feito ao governador de Pernambuco, o seguinte:
"Eu, Dom João, pela Graça de Deus, etc., faço saber a V. Mercê que me aprouve banir para essa cidade vários ciganos - homens, mulheres e crianças - devido ao seu escandaloso procedimento neste reino. Tiveram ordem de seguir em diversos navios destinados a esse porto, e, tendo eu proibido, por lei recente, o uso de sua língua habitual, ordeno a V. Mercê que cumpra essa lei sob ameaça de penalidades, não permitindo que ensinem dita língua a seus filhos, de maneira que daqui por diante o seu uso desapareça."

Os documentos históricos comprovam que a então comunidade cigana em Salvador apresentou um grande crescimento demográfico e econômico. A primeira capital colonial brasileira tornou-se também a mais importante cidade para os ciganos do Brasil. Consta que em Salvador os ciganos inicialmente foram alojados no bairro da Mouraria, e posteriormente também no bairro de Santo Antonio d’além do Carmo”. De Salvador saíram muitos ciganos rumo a região das minas (hoje Minas Gerais), causando grande incômodo às autoridades. Sem indicarem as fontes nas quais se basearam, historiadores como Augusto de Lima Júnior e João Dornas Filho apontam a presença de ciganos nas Minas de Ouro (hoje Minas Gerais) já nos fins do século XVII. Lima Júnior acredita que os ciganos chegaram a Minas logo após o descobrimento do ouro: "os judeus e cristãos-novos, bandos imensos de ciganos, atiraram-se para as terras ultramarinas, buscando a fortuna e a redenção na largueza dos sertões infindos, onde dificilmente chegariam as importunações do Santo Ofício."
Na verdade, sabe-se que a Inquisição se preocupou pouco com os ciganos. O autor ainda informa sobre a preocupação das autoridades com eles. Descrevendo a alarmante escassez de víveres de 1700 em Ouro Preto e arredores, comenta que, naquele ambiente de desespero e desolação, "os negros escravos e os bandos de ciganos bem armados salteavam os vivos e saqueavam os mortos." Mais adiante, quando o autor menciona "a confusão e a desordem reinantes nessas Minas Gerais recém-nascidas", acrescenta que "bandos de ciganos ágeis e aguerridos percorriam as estradas entregues à mais solta rapina." Para esses supostos crimes ciganos, Lima Júnior também não apresenta nenhuma fonte.

João Dornas Filho, sem apresentar qualquer documento, afirma que os ciganos chegaram a Minas Gerais possivelmente penetrando "pelo Rio São Francisco com as primeiras entradas baianas." Mesmo tendo-se dúvida quanto à presença de ciganos em Minas Gerais no Século XVII, ou mesmo antes, quando das primeiras entradas baianas, parece bem provável que a penetração tenha se dado pelo vale do São Francisco. Pela extensão e características físicas do território, ainda que Minas dispusesse de inúmeras estradas e caminhos, eram os vales fluviais que cumpriam a função de ser a principal forma de adentrar o sertão. As afirmações dos historiadores acima são duvidosas, porque não citam fontes documentais. Certamente alguns ciganos chegaram até as Minas de Ouro em seus primeiros tempos. Mas foi somente a partir de 1718 que diversas famílias ciganas vieram juntas para o território mineiro. A presença comprovada de ciganos em Minas Gerais é registrada desde o início do Século XVIII, ao que tudo indica contrariando as intenções originais da Coroa portuguesa.

Dom Lourenço de Almeida, num bando de 15jul1723, fazendo uma variação do decreto de 1718, recorda que El Rey havia remetido ciganos ao Brasil, apenas para que seguissem em direção a Angola, e não para que ficassem no continente americano. Acrescentando, reclama: "por ser hua gente muito prejudicial aos seos povos porque não vivem se não dos roubos q. fasem, cometendo exacrandos insultos, e porque pelo descuido que houve el algua das praças da Marinha vieram para estas Minas vartas familias de ciganos, onde podem fazer mayores roubos q. em outra nenhua parte (...)."
Um documento de 1723, de Vila Rica (hoje Ouro Preto) informa que “pelo descuido que houve em alguma das praças da Marinha vieram para estas Minas várias famílias de ciganos”, e manda prender todos eles e remeter para o Rio de Janeiro, de onde então seriam deportados para Angola. Não somente manda prender os ciganos, que o documento chama de “ladrões salteadores”, mas também seriam presos e degredados para Angola todos aqueles que se encontrarem em sua companhia ou lhes hospedarem em suas casas ou fazendas. Além disto, qualquer cidadão podia prender ciganos e entregá-los na cadéia mais próxima, podendo a pessoa tomar-lhes todos os bens, ouro, roupas ou cavalos. Porém, em 1737 o governador de Minas Gerais adverte: “Pelo que toca a ciganos as queixas que há são só por serem ciganos, sem que se aponte culpa individual (.....) tenho recomendado que prendam e me remetam os que fizerem furtos”, ou seja, não qualquer cigano apenas pelo fato de ser cigano. E como tudo que é ruim só podia ser de origem cigana, houve quem suspeitasse que a epidemia de varíola que naquele ano grassava em Minas Gerais tinha sido trazido pelos ciganos!

Dornas Filho acrescenta longas narrações sobre a ação de salteadores, principalmente na Serra da Mantiqueira, até o final do Século XVIII, citando inclusive cartas de Tiradentes que, segundo ele, “comandou por mais de uma vez a tropa de assalto ao reduto desses malfeitores, prendendo e matando ciganos às dúzias”. Ou seja, o heroi mineiro e nacional Tiradentes assassinou covardamente também algumas dezenas de ciganos, quase todos eles certamente desarmados e trabalhadores honestos, mas um genocídio que na época era motivo até de recompensas financeiras e honrarias especiais. O leitor fica com a impressão que em todos estes casos citados por Dornas Filho se trata de ciganos, porém a maioria dos documentos não faz absolutamente nenhuma referência a ciganos, mas apenas a bandidos em geral ou, quando muito, fala de “ciganos e outros malfeitores”. Alguns podem até ter sido ciganos, mas com certeza a quase totalidade destes bandidos, assaltantes e assassinos da época eram portugueses, mineiros ou brasileiros, não-ciganos. No entanto, sempre quando algo de ruim acontecia e um cigano por acaso estivesse na redondeza, já se sabia a quem atribuir a culpa. Em 1726 há notícia de ciganos em São Paulo, quando foram solicitadas medidas contra ciganos que apareceram na cidade e que eram “prejudiciais a este povo porque andavam com jogos e outras mais perturbações”, pelo que tiveram que abandonar a cidade dentro de 24 horas, sob pena de serem presos. E em 1760 os vereadores de São Paulo resolveram “que por ser notório que nesta cidade se acha um bando de ciganos composto de homens, mulheres e filhos sendo público terem sido expulsos de Minas Gerais por serem perniciosos naquelas povoações e assim se vieram acolher a esta cidade aonde já vão havendo algumas queixas (....)”. Também estes receberam um prazo de 24 horas para sair da cidade. Ou seja, trata-se da velha política de “mantenho-os em movimento”: Minas Gerais expulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro, que os expulsa para Espírito Santo, que os expulsa para a Bahia, de onde são expulsos para Minas Gerais, etc. Ou seja, o melhor lugar para os ciganos sempre é no bairro, no município ou no Estado vizinho; ou então no país vizinho ou num país bem distante. Um alvará de 1760 informa:
“Eu El Rei faço saber aos que este Alvará de Lei virem que sendo me presente que os ciganos que deste Reino tem sido degredados para o Estado do Brasil vivem tanto à disposição de sua vontade que usando dos seus prejudiciais costumes com total infração das minhas Leis, causam intolerável incômodo aos moradores, cometendo continuados furtos de cavalos, e escravos, e fazendo-se formidáveis por andarem sempre encorporados, e carregados de armas de fogo pelas estradas, onde com declarada violência praticam mais a seu salvo os seus perniciosissimos procedimentos; considerando que assim, para sossego público, como para correção de gente tão inútil e mal educada se faz preciso obrigá-los pelos termos mais fortes e eficazes a tomar vida civil, sou servido ordenar que os rapazes de pequena idade filhos dos ditos ciganos se entreguem judicialmente a Mestres, que lhes ensinem os ofícios e artes mecânicas, aos adultos se lhes assente praça de soldados, e por algum tempo se repartam pelos presídios de sorte que nunca estejam muitos juntos, em um mesmo presídio, ou se façam trabalhar nas obras públicas pagando-lhes o seu justo salário, proibindo-se a todos poderem comerciar em bestas e escravos e andarem em ranchos; que vivam em bairros separados, nem todos juntos, e lhes não seja permitido trazerem armas, não só as que pelas minhas leis são proibidas, que de nenhuma maneira se lhes consentirão, nem ainda nas viagens, mas também aquelas que lhes poderão servir de adorno. E que as mulheres vivam recolhidas e se ocupem naqueles mesmos exercícios de que usam as do país. E hei por bem que pela mais leve transgressão do que neste alvará ordeno, o que for compreendido, nela seja degredado por toda a vida para a ilha de São Thomé, ou do Príncipe, sem mais ordem e figura de juizo..... ”.
Ao que Oliveira China acrescenta: “A parte curiosa desse documento é a que nos revela que em nossas plagas a ‘atividade’ desses nômades não se limitou ao furto de animais, na prática do qual, como é sabido, são useiros e vezeiros; ela foi além, pois estendeu-se também ao furto ou roubo de escravos! Fato sem dúvida, original, e que ainda mais ressalta a ‘habilidade’, por assim dizer inata, que eles têm para a rapina, encarada sob todos os seus aspectos e particularidades..”. Por onde se vê que também Oliveira China não escapava dos preconceitos anti-ciganos: se os ciganos vendiam escravos, estes só podiam ser roubados, da mesma forma que qualquer cavalo de um cigano só pode ser um cavalo roubado! Nunca alguém pensa que estes cavalos ou escravos podem ter sido adquiridos honestamente. Vários outros documentos confirmam que, no Brasil, os ciganos também se dedicavam ao comércio de escravos, mas nenhum prova que roubavam escravos.

Numa carta de 1761, do governador interino José Carvalho de Andrade ao Conde de Oeiras, consta que os ciganos baianos, então já em número de “alguns mil”, tiveram antecipadamente conhecimento do alvará acima citado, pelo que “(....) foram insensivelmente desertando, o que lhes foi fácil por morar em bairros apartados, e por ser gente que costumava muitas vezes deixar as casas para irem fazer trocas e vendas pelos sertões. Ficaram poucos na cidade”. Continua a carta:
“Logo mandamos ordens a todos os ouvidores, capitães mores, juizes de fora e ordinários, que prendessem todos, os que não fossem dessas terras moradores, e ainda a esses os obrigassem à regularidade da dita lei. Escrevemos logo ao governador do Rio de Janeiro e ao de Pernambuco, para que os não deixassem viver nos matos. Alguns que nos vieram falar, e são velhos e casados os mais deles, nos requerem que lhes deixemos arrendar fazendas e viver da lavoura, o que lhe facultamos, com tanto que os filhos adultos os entreguem para soldados e os pequenos para se porem aos ofícios. As filhas será mais difícil acomodá-las, porque na Bahia não se querem servir com brancas e menos com filhas de ciganos, temendo que alguma noite se ajustem com os pais para roubar as casas e sobretudo quererem só servir-se com mulatas e pretas. (...) (Os ciganos) se se juntarem serão alguns mil em toda a capitania, além dos escravos que possuem, tais como eles, e de alguns índios que poderão coadunar. Por isso lhe temos proposto aos que nos falam, que deles se não procuro outra coisa mais, do que viver como portugueses, vassalos de S. M., que eles mesmos escolham mestres e ofícios para os filhos de menor idade e aos adultos que os tragam para se lhe assentar praça, donde eles elegerem que os velhos e casados e as mulheres se firmem em lojas de vendas nesta cidade donde lhe parecer, para que se lhe darão despachos e guias para as justiças das terras. Com isto alguns tem vindo e entregue os filhos para os ofícios e outros se lhe destina sítio perto desta cidade para lavouras, depois de trazerem arrendamentos dos senhorios....”.

Dois meses depois, numa segunda carta, o mesmo autor informa:

“Os ciganos vem vindo bastantes a querer tomar vida regrada, porque por todas as partes os prendiam ..... Os casados entregam os filhos solteiros aos oficiais mecânicos se são de idade competente e os adultos alguns assentaram praça, mas muito raros, por não apparecerem ou porque esta gente casa logo nestas terras de mui pouca idade. Os mais vão arrendando terras, ocupando-se com suas mulheres em lavouras e em abrir terras de novo, deixando totalmente o ilícito comercio e o modo libertino que tinham de vida....”.

O mesmo deve ter acontecido também em outras capitanias. Resta saber se os ciganos arrendavam propriedades rurais para se dedicarem realmente às atividades agrícolas, completamente estranhas à sua cultura por ser incompatível com a vida nômade, ou se era apenas mais uma estratégia para, longe dos olhos dos portugueses, terem pontos de apoio para continuarem, unidos e em bandos, a sua antiga vida de comerciantes de animais, de escravos e de produtos artesanais.
Pereira da Costa, falando dos ciganos em Pernambuco, também se refere a ciganos que ganhavam seu sustento honestamente:

“Os ciganos andavam em bandos mais ou menos numerosos, e aqueles que não se entregavam à pilhagem, e a certos negócios, como a compra e venda de cavalos, nos quais os indivíduos pouco experientes sempre saíam logrados, eram geralmente caldeireiros ambulantes, e onde quer que chegassem, levantavam as suas tendas, e saíam à procura de trabalho que consistia, especialmente, no conserto de objetos de latão e cobre. As mulheres, porém, importunas, astutas e nímiamente loquazes, saíam a esmolar, e liam a buena dicha pelas linhas das mãos, predizendo a boa ou má-sorte do indivíduo, mediante uma remuneração qualquer”.

A deportação de ciganos portugueses continuou pelo menos até o final do Século XVIII. De 1780 a 1786, o secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo Castro, enviou grupos de 400 ciganos anualmente para o Brasil. Julgando pelo teor de uma carta de 1793, vê-se que os ciganos deportados "não eram úteis à coroa nem ao Brasil." Mesmo assim, as deportações continuaram pelo menos até o fim do século. De acordo com uma correspondência de 1761, entre uma autoridade da Capitania da Bahia e o Conselho Ultramarino, "se se juntarem [os ciganos] serão alguns mil em toda a capitania, além dos escravos que possuem, taes como elles e de alguns índios, que poderão coadunar".

Co-autor desta parte: Frans Moonen
Diégues Junior, M., Imigração, urbanização, industrialização, Rio de Janeiro, 1964, pp. 26-28
Vilas-Boas da Mota, A.. “Os ciganos do Brasil”, Correio da Unesco, ano 12, 1984, p. 32; “Os ciganos, uma minoria discriminada”, Revista Brasileira de Política Internacional, ano XXIX, vol. 115/116, 1986, p.32.
Costa Pereira, C. da, Povo Cigano, Rio de Janeiro, 1985, p.31; “Gli zingari in Brasile”, Lacio Drom, ano 26, n. 6, 1990, p. 3; “La situazione sociale degli zingari in Brasile”, Lacio Drom, Suplemento ano. 1-2, 1992, p.121.
Donovan, B. M., “Changing perceptions of social deviance: gypsies in early modern Portugal and Brazil”, Journal of Social History, Vol. 26, 1992, p. 42; o autor informa que "o terremoto de Lisboa destruiu a maioria da documentação referente às deportações antes de 1755. O anexo dos Feitos Findos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo possui manuscritos não-catalogados sobre deportação" (p. 52, nota 49); acrescenta-se que ainda não foi feita em Portugal nenhuma pesquisa exaustiva sobre a documentação referente a ciganos.
Coelho, A., Os ciganos de Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1995, pp. 199-200 [1a. edição 1892]
Coelho 1995, pp. 218-220
Couto, C., “Presença cigana na colonização de Angola”, Studia, Lisboa, no. 36, 1973, pp. 107-115.
Donovan 1992. p. 38.
Costa, F. A. Pereira da, Anais Pernambucanos, Vol. V (1701-1739), Recife, Arquivo Público Estadual, 1983. p. 299.
ORDEM por que o Excelentíssimo Senhor Vice-Rei concedeu licença a Luiz de Souza e outros, todos ciganos, todos moradores em Pernambuco para irem morar a Sergipe de El-Rei. Documentos históricos, Rio de Janeiro, vol. 69, p. 121-122, 1945. Para saber mais sobre ciganos no Nordeste deve-se consultar Costa (1983, p. 299-303). Segundo Charles R. Boxer (A idade do ouro no Brasil. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1969. p. 371), os Anais Pernambucanos (5 volumes) de Costa foram compilados em fins do século XIX e início do século XX, embora apresentem um material significativo retirado de fontes manuscritas, "infelizmente nem sempre com as referências adequadas", baseando-se principalmente em: Fernandes Gama, J. B. Memórias históricas da província de Pernambuco. 4 vols. Pernambuco, 1844-1848.
Costa 1983, V, pp.299-300
Kidder , D. P., Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia / São Paulo, Edusp, 1980, p. 39 [tradução da primeira parte do original de 1845].
Kidder 1980, p. 39.
China, J. B. D'Oliveira. “Os ciganos do Brasil; subsídios históricos, etnográficos e lingüísticos”, Revista do Museu Paulista, Tomo XXI, São Paulo, 1936, p. 402.
China 1936, p.402, pp.404-405
Lima Junior, A. de. A capitania de Minas Geraes; origens e formação, Belo Horizonte, Instituto de História, Letras e Artes, 1965, p. 54.
Lima 1965, p. 47, p. 60.
Dornas Filho, J, “Os ciganos em Minas Gerais”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano III, vol. III, 1948, p. 146 [este ensaio foi publicado nas pp. 138-187 da revista citada acima, mas quase todos os ciganólogos brasileiros citam uma ‘separata’ deste ensaio, que inicia na página 1].
A Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro foi criada em 1709, separando-se do governo do Rio de Janeiro. Em 1720, Minas de Ouro desmembrou-se da Capitania de São Paulo.
Moraes Filho, A. F. de Mello, Os ciganos no Brasil & Cancioneiro dos ciganos, Belo Horizonte, Itatiaia / São Paulo, EDUSP, 1981, pp. 26-27. [edições originais de 1886 e 1885, respectivamente]
Bando de 15Jun1723 de Dom Lourenço de Almeida; apud Dornas Filho 1948.
Dornas Filho 1948, pp.11-12, p.14

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